28.6.23

"O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão".

(Álvaro de Campos)

29.5.22

epílogo


 Diz-me das tuas feridas abertas,

do ocaso, já lânguido,

na exausta pálpebra.


Diz, para que o meu silêncio

afunde nossas mãos em hera

e o verde de outrora


nos apodreça, erguendo

palma a palma, em muro,

o pó dos dias caídos.


20.1.22

 As horas da manhã se incendiaram 

em dentes roxos:

é sempre tarde.


(na imensidão do corpo

produzíamos adiamentos,

sussurros)


tu me conduzias pela ponte

rumo ao precipício -

eu em tempo de olhar pétalas.


e sem nenhum sobreaviso

sempre à vista de um gavião

pulávamos.



13.12.21

 há tantos livros tantos

e para cada um deles uma infinidade de linhas -

em cada linha uma vasta composição

escondendo séculos de vida e morte.


há tantos homens tantos

e para cada um deles uma infinidade de sombras -

em cada sombra uma vasta promessa

diluída em silêncios & feixes de luz.


não: nada importa

senão diminuir o passo frente ao precipício

e contemplar em face ao delírio de flores na escarpa

a queda.

26.3.21

entendo que é preciso o mistério 
que me fará não poder descrever 
teu seio 
tua boca
a curva do teu pescoço: 

o teu corpo substantivo 
morando nele a pergunta 
a dor ancestral 
o abismo composto de um 
isto

20.2.21

traço um painel 

fino 

em brisa.

o vento aconchega as palavras

em dois ou três delírios.


durmo no senão das missas,

no preceito enrugado das filas

:

algo queima do outro lado.


observo.

20.6.20

talvez porque desistir também seja um ato
deponho as armas
e deslizo entre o mínimo:

veredas
sussurros
um quadro antigo preso
na retina do tempo.

como isto de sermos
senão por aquilo que se denega:
os objetos do porão.

remanejar
à faca sem gume
à boca já seca
à semente já rota
um passo atrás

para o futuro.

16.6.20

pergunta aberta

eu?

22.2.20

então a voltou a escrever como quem volta dos mortos
e mais preciso, porque despojado
da precedente histeria -
ah o jovem louco partira-se
cansado
e só uma lágrima cristalizada
um fio cortante da dor
perpassava-o
(sabendo que nada é importante
nada, nem escrever
nem estar vivo)

12.2.20

Se eu não terminar ungido
Se eu não correr do perigo
Se eu não rezar só por egoísmo

Se eu dormir sem sonhos

Se eu não abraçar o inimigo
Se eu não amar por vaidade
Se eu me envaidecer sozinho

Se eu cuspir o excesso

Se eu não me abster do hálito da noite
Se eu não sorrir de desespero
Se eu não desesperar na morte

Já está bom.

1.12.18

não tenho o tato dos deuses
nem a fúria das crianças
:
a sorte me despiu.

pela janela, os olhos
dançam entre frutos de árvores
e arlequins.

já os dedos trançam um destino,
esquecidos de si
e de mim.

5.1.18

"[...] Já escrevi sobre esse corpo, sobre as dores que causei a outros e as que eu mesmo me impus, gravei com fogo meus poemas sobre minha pele. Só os doentes, os fracos, os feridos, são capazes de criar obras mestras. Sinto que escrevi a partir de um certo irreparável desespero e, ao mesmo tempo, a partir de uma irrefreável alegria. Uma alegria estranha porque é como se nascesse da dificuldade de sermos felizes. Do encontro desses fantasmas nasce minha escrita. A escrita é como as cinzas que restam de um corpo queimado. Para escrever é preciso queimar-se inteiro, consumir-se até que não reste nem um fragmento de músculo nem de ossos nem de carne. É um sacrifício absoluto e ao mesmo tempo é a suspensão da morte. É algo concreto, quando se escreve a vida fica suspensa e, portanto, fica suspensa também a morte. Escrevo porque é meu exercício privado de ressurreição. [...]"

Raúl Zurita, poeta chileno.

20.3.17

Você, repisado. Dilacerado. Como uma conta que não fecha. Há a fabulação diária - um sol no qual é preciso crer -; uma renitência absurda, infame, heroica. Você se surpreende por ainda, no final das contas, ser capaz de sair da cama, compor gentilezas, fabular o humano; mesmo que em cada palavra ressoe o vazio, o grito, coisa-sem-nome entalada. Você não poderia, nem que quisesse, dar nome ao inferno: seu grande propósito é morrer entalado.

16.9.16

a escrita ainda é o que sobra.

nas sobras dela o destino cisca suas migalhas.

em cada migalha há um prenúncio.

o prenúncio é a porta-palavra de onde se parte.

o rio, no entanto, não deságua em nenhum mar.

há um fluir e um marulhar e uma cristalização

de seres que deslizam sob seu mistério.

todo mistério é uma derrocada antecipada:

é necessário despir-se de deuses e metafísicas

pois todo o oculto dorme sob o sangue.

de resto, nada mais.
sim senhora adornadora de sentidos
sim senhora domesticadora de trens
alucinatórios
o mundo cedeu os demônios mentiram
as rezas quebrantos maledicências
nos conduzem
sim vamos combalir senhora
pela voracidade dos vermes que ora
regurgitam
sua baba
- ainda não é hora -
sim os vermes a resiliência
o vírus adormecido no tempo
a catacumba no fundo dos olhos
um céu já desprovido do branco
um sangue já desprovido do vermelho
uma morte já desprovida do luto
senhora.
era tudo noite
os homens se desfaziam
era tudo noite
cães lambedores de sêmen
pétalas rijas
um olhar empedrado de lua.

era tudo sombra
de orações aprisionadas
era tudo sombra
de sexos e bocas cálidas.

sua boca arrefecia o luar
apagava o choro -

as crianças acordavam.

15.9.16

e já não há mais rotas
estamos rotos
sem pouso -
a letra é morta.

a dança acrobática
o riso louco
o passo mouco -
nada fere a casca.

a rima, se há,
se enquadra no poema -
há metro
diagram-
ação org
anicidad
e poética

fugi
                   fugi
                                                                       fugi

para onde

?

20.8.16

deâmbulo

estamos sozinhos,
não saímos:
arco-íris pintados nas paredes
amor em touchscreen
beijos de látex.

ainda na pele esverdeada
um filete de sangue
a lágrima invertida
o pau - animal resiliente -
babando.

ainda uma memória
semi-palpável.
ainda o acre
da faca nos dentes,
rangentes.

31.7.16


o papa em auschwitz

o papa esteve em auschwitz.
algo do papa esteve em auschwitz
quando suas mãos tocaram a pedra fria
já desvestida do horror.

o papa esteve em auschwitz
e uma criança e um santo
e o judeu esfomeado
clamaram em sua divinizada cabeça.

em auschwitz, o papa:
o rito da dor e da misericórdia
encontrou rostos contritos
e o vento lavrou cópia de tudo.

(câmeras, muitas câmeras,
flashes e tempo real e trajes a rigor
quando um papa em auschwitz)

em auschwitz o papa
de uma indumentária imaculada
encontrou bocas para as suas mãos
encontrou o papamóvel para as suas pernas

o papa não encontrou deus.

30.7.16

registro

lembro de uma vez ter escrito teu nome em pedra.
tu não sabes que escrevi
teu nome em pedra.

puro engano: hoje sei
que a pedra nada sabe do teu nome
nem teu nome - posto que não sabes - dela.

a pedra permanece, mercê de contratempos,
ígneas concavidades
e um registro alheio à sua natureza.

estranhos:
três seres hoje descompactados
além de um estrago
no peito
na pedra.

pois que me tornei o arauto do oco
do desplante
do descaso
da ferida -

do silêncio dito em mordidas
no pão seco
na palavra utilitária
no aceno desvalido.

sonâmbulo em vigília
abortado de contiguidades
assassinado sem vestígios -

há um frio de que não me abrigo
há um calor de que não disponho
há uma fome em que me entranho

e me estranho, ainda, apesar-de, estar.

11.7.16

Talvez a descoberta partilhada a medo
E o tato
O cheiro-húmus da tua boca
Possam me refazer me deslocar
Dali onde tudo era silêncio.
E como ficou chato ser moderno. 
Agora serei eterno. 

Eterno! Eterno!
O Padre Eterno, 
a vida eterna, 
o fogo eterno. 

(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)

— O que é eterno, Yayá Lindinha?
— Ingrato! é o amor que te tenho. 

Eternalidade eternite eternaltivamente
                   eternuávamos
                           eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno. 

Eterna é a flor que se fana
se soube florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem nome 
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e 
                                     [nenhuma força o resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos; e
                                                [passageiras as obras. 
Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um
                                                [mar profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos
                                                [afundamos.
É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios. 
Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.

Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma
                                               [essência
ou nem isso. 
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde
                                               [pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como
                                             [uma esponja no caos
e entre oceanos de nada
gere um ritmo.

- Drummond.

26.1.16


Falar de poesia, como coisa ainda viva
Contornar a si mesmo - coisa ainda viva -
Aparando os excessos do eu
Divergindo da voz no instante mesmo
em que a voz nasce, cresce, zumbe.

Calar a poesia - porque o tempo urge
e é feroz -
Em cada golpe de faca um ultimato
ao lirismo podre de velho.

Pelas ancas nuas do Abismo
os amores jamais existirão:
sob uma lua sanguinolenta,
em transes de fúria,
cadáveres do passado esmurram vidros.

:::AVISO:::
Procura-se no átimo do soco
Nas vítimas que jazem em sacos
ESSA voz.


14.12.15


VERSOS À BOCA DA NOITE

Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva...
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?

Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.

Mas se eu pudesse recomeçar o dia!
Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome...Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.

Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação da minha vida,
como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,

e tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,

e fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a idéia do passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.

E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.

Esta casa, que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? em ti?
que palavra escutaste, e onde, quando?
seria indiferente ou solidária?

Um pedaço de ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-riso e em tua ama preta.

Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:

uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,

mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo

comprada em sal, em rugas e cabelo.

                                                          Carlos Drummond de Andrade 

22.11.15

isso:

não foi por amar menos ou demais.
não foi por resquício,
trauma,
poeira acumulada.

não foi por prolixidade,
nem por minguar
a palavra
à boca.

não foi por excesso ou falta
de fome.

não foi pela avareza de ser
um pássaro mutilado.

não foi pelo empoderamento dado
à lama pelo chão.

foi por ser livre.

20.11.15

De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não, nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.

A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.

("Depoimento", Miguel Torga)

14.11.15

os mortos não se contam
nem o mutismo dos deuses
na lama no caos na guerra.

exerço o silêncio - lírios
hasteados na chuva -
contra o convencimento.

há o grito dos punhos,
há o impacto das vozes,
há o decreto das cores.

um tiro
            cego
                     surdo
                               mudo
                                         escuro
                                                    me es-
buraco.

8.11.15

A carne e os ossos

Meu avião só partia no dia seguinte. Pela primeira vez lamentei não ter um retrato da minha mãe comigo, mas sempre achei uma idiotice andar com retratos da família no bolso, ainda mais da mãe.
Eu não me incomodava de ficar mais dois dias vagando pelas ruas daquele grande formigueiro sujo, poluído, cheio de gente estranha. Era melhor do que andar por uma cidade pequena com ar puro e caipiras que dizem bom-dia quando cruzam com você. Eu ficaria ali um ano se não tivesse aquele compromisso me esperando.

Andei o dia inteiro respirando monóxido de carbono. À noite meu anfitrião me convidou para jantar. Uma mulher nos acompanhava.

Comemos vermes, o prato mais caro do restaurante. Ao olhar um deles na ponta do garfo, pareceu-me uma espécie de larva ou pupa de berne que ao ser frita perdera os pêlos negros e a cor leitosa. Era um verme raro, explicaram-me, extraído de um vegetal. Se fosse um berne a iguaria seria ainda mais cara, respondi, irônico, já tive berne no meu corpo três vezes, dois na perna e um na barriga, e os meus cavalos e os meus cães também tiveram, é difícil tirar ele inteiro, de forma a ser comido frito, somente frito poderia ser saboroso, como estes aqui — e enchi minha boca de vermes.

Depois fomos a um lugar que o meu anfitrião queria me mostrar.

O amplo salão tinha ao centro um corredor por onde mulheres desfilavam nuas, dançando ou fazendo poses. Passamos por entre as mesas, em torno das quais sentavam-se homens engravatados. Pedimos algo ao garçom, depois que nos instalamos. Ao nosso lado uma mulher com apenas um cache-sexe, postada de quatro, esfregava as nádegas no púbis de um homem de paletó e gravata sentado de pernas abertas. Ela exibia uma fisionomia neutra e o homem, um sujeito de uns quarenta anos, parecia tranqüilo como se estivesse alojado numa cadeira de barbeiro. O conjunto lembrava uma instalação de arte moderna. Poucos dias antes, em outra cidade, em outro país, eu havia ido a um salão de arte ver um porco morto apodrecer dentro de uma caixa de vidro. Como fiquei poucos dias na cidade, pude apenas ver o animal ficar esverdeado, disseram-me que era uma pena eu não poder contemplar a obra em toda a sua força transcendente, os vermes comendo a carne.

Ali, no cabaré, aquela exibição também me parecia metafísica como a visão do porco morto em seu recipiente de cristal brilhante. A mulher me lembrou, por um curto momento, um sapo gigantesco, porque estava agachada e porque seu rosto, mulato ou índio, tinha algo de anfíbio. Na mesa havia mais três homens, que fingiam não tomar conhecimento dos movimentos da mulher.

Do nosso lugar não podíamos ver tudo o que acontecia no salão. Mas nas mesas em torno de nós havia sempre uma ou duas mulheres atracadas num homem inteiramente vestido. O bilhete de entrada dava direito a que uma das inúmeras mulheres que faziam strip-tease em vários pontos do salão se esfregasse por algum tempo no portador do ticket de entrada. Havia um padrão coreográfico nas carícias: a mulher punha-se de quatro, roçava as nádegas no púbis do homem que permanecia sentado na cadeira, depois dançava à frente dele. Algumas, mais rebuscadas, subiam em cima do sujeito e prendiam-lhe o rosto no vértice das suas coxas. Depois pegavam o ticket de entrada e afastavam-se.

A única mulher que assistia àquele espetáculo era a nossa acompanhante. O meu anfitrião a chamava de Condessa, não sei se era o nome dela ou o título. Quando era jovem conheci uma mulher que me disse ser uma Condessa verdadeira, mas acho que era mentira. De qualquer forma eu chamava a minha companheira de mesa de senhora Condessa, como antigamente eu fazia com a outra. Ela olhava o que acontecia em torno e sorria discretamente, comportava-se como supunha que um adulto deve proceder num circo.

De todos os cantos vinha o som alto de dance music. Para poder falar com a Condessa eu tinha que aproximar minha boca da sua orelha. Eu disse alguma coisa que me distinguia como um observador isento e entediado, esqueci o que foi. Também com a boca quase colada na minha orelha, a Condessa, depois de comentar a atitude de uma mulher perto de nós que esfregava a boceta na cara de um homem de gravata-borboleta, citou em latim a conhecida frase de Terêncio: as coisas humanas não lhe eram alheias, e portanto não a assustavam. E para demonstrar isso balançou o corpo no ritmo do som retumbante e cantou a letra de uma das músicas. Eu a acompanhei, batendo na mesa.

No salão havia um boxe de vidro com chuveiro, fortemente iluminado por spots de luz, no qual as mulheres se revezavam tomando banho. Algumas molhavam e lavavam o corpo inteiro, ensaboavam artelhos, pentelhos, joelhos, cotovelos, cabelos. Outras faziam abluções estilizadas. Elas estão dizendo estou limpa, confie em mim, sussurrou a Condessa no meu ouvido.

Esperamos correr a rifa. O premiado poderia escolher qualquer das mulheres para passar o resto da noite com ele, na palavra do mestre-de-cerimônias.

Nós, eu e o meu anfitrião, não fomos sorteados. A Condessa não comprara a rifa.

Então ficamos calados, sem cantar e sem bater na mesa acompanhando a música. Pagamos — o anfitrião pagou — e saímos.

Despedimo-nos na calçada em frente ao bar. A Condessa se ofereceu para me levar ao hotel. O anfitrião também. Eu disse que queria andar um pouco, as grandes cidades são muito bonitas ao amanhecer.

Eu já caminhava havia uns dez minutos, lastimando não ter uma foto da minha mãe no bolso, nem num álbum, nem em nenhuma gaveta, quando o carro da Condessa parou ao meu lado.

Entra, ela disse, estou sentindo vontade de chorar e não quero chorar sozinha.

Ao chegarmos ao hotel havia um recado do meu irmão. Liguei para ele do quarto. A Condessa ouviu a conversa com meu irmão. Sinto muito, ela disse, sentando-se na cama, cobrindo o rosto com as mãos, mas não estou chorando por você, estou chorando por mim.

Deitei na cama e olhei para o teto. Ela deitou-se ao meu lado. Encostou o rosto úmido no meu e disse que foder era uma maneira de celebrar a vida. Fodemos em silêncio e depois tomamos banho juntos, ela imitou uma das mulheres do cabaré se lavando e cantando e eu a acompanhei batendo nas paredes do boxe do chuveiro. Ela disse que estava se sentindo melhor e eu disse que estava me sentindo melhor.

Peguei o avião.

Nove horas e meia depois cheguei ao hospital.

O corpo de minha mãe estava na capela, dentro de um caixão coberto de flores, sobre um catafalco. Meu irmão fumava ao lado. Não havia mais ninguém.

Ela perguntava muito por você, disse o meu irmão, então me aproximei dela e disse que eu era você, ela segurou na minha mão com força, disse o seu nome e morreu.

No jazigo da família já estavam os restos do meu pai e do meu irmão. Um funcionário do cemitério disse que alguém teria que assistir à exumação. Eu fui. Meu irmão parecia mais cansado do que eu.

Eram quatro exumadores. Abriram a campa de mármore rosa e arrebentaram com martelos a placa de cimento que fechava a sepultura. O jazigo era dividido em dois por uma laje. Um dos coveiros entrou dentro do buraco aberto, com cuidado para não pisar nos restos do meu irmão, na parte superior. As roupas do meu irmão estavam em bom estado. Ele tinha bons dentes, os molares obturados com ouro. Quando a cabeça foi retirada o maxilar inferior se desprendeu do resto do crânio. O fêmur e a tíbia estavam mais ou menos inteiros; as costelas pareciam de papelão pardo.

Os ossos foram jogados pelo coveiro numa caixa de plástico branco ao lado da sepultura. Três baratas e uma lacraia vermelha subiram pelas paredes, a lacraia parecia mais veloz do que as baratas, mas as baratas sumiram primeiro. Eu disse em voz alta que a lacraia era venenosa. O coveiro, ou que nome tivesse, não deu importância ao que eu dissera.

Logo que os restos do meu irmão foram colocados na caixa de plástico, o nome dele foi escrito em letras grandes na tampa. Um dos homens entrou na sepultura e arrebentou com marreta e formão a laje que fechava a parte inferior onde se encontravam os restos do meu pai, que morrera dois anos antes do meu irmão. O exumador voltou a entrar na sepultura. Os ossos do meu pai estavam em pior estado que os do meu irmão, alguns tão pulverizados que pareciam terra. Tudo foi jogado dentro de outra caixa plástica, misturado com restos de tecido, as roupas do meu pai não eram tão boas como as do meu irmão e haviam apodrecido tanto quanto os ossos. Do crânio do meu pai só restara a dentadura postiça; o acrílico vermelho da dentadura brilhava mais do que a lacraia.

Dei uma boa gorjeta para os sujeitos. As duas caixas foram colocadas ao lado da sepultura.
Voltei para a capela.

Meu irmão fumava olhando pela janela o trânsito lá fora.

Um padre apareceu e rezou.

O caixão fechado foi colocado numa carreta. Seguimos, eu e o meu irmão, a carreta empurrada pelo coveiro até a sepultura aberta. O caixão da minha mãe foi colocado na parte inferior. Uma laje foi cimentada, deixando a parte superior vazia, à espera do futuro ocupante. Sobre essa laje foram provisoriamente depositadas as duas caixas com os restos do meu pai e do meu irmão. A campa de mármore rosa com os nomes dos dois, gravados em bronze, fechou a sepultura.

Devem ter roubado as obturações de ouro dos dentes do meu irmão enquanto fui à capela apanhar a minha mãe, pensei. Mas estava muito cansado para comentar isso. Caminhamos em silêncio até a porta do cemitério. Meu irmão me deu um abraço. Quer uma carona?, perguntou. Eu disse que ia caminhar um pouco. Olhei o carro dele se afastar. Fiquei ali, em pé, até escurecer.

(Rubem Fonseca, em 'O buraco na parede') 

20.10.15

DERROTA

Eu que nunca tive um emprego
que ante todo adversário me senti débil
que perdi os melhores troféus para a vida
que apenas chego em um lugar já quero partir (crendo que mudar é uma solução)
que sou subestimado e recusado pelos mais hábeis
que me seguro nas paredes para não cair
que sou motivo de piada para mim mesmo por crer
que meu pai seria eterno
que sou humilhado por professores de literatura
que um dia perguntei em que poderia ajudar e a resposta foi uma gargalhada
que não poderei nunca ter um lar, nem ser brilhante ou triunfar na vida
que sou abandonado pelas pessoas por ser tão calado
que sinto vergonha por atos que não pratiquei
que falta pouco para que eu corra louco pelas ruas
que perdi o equilíbrio que nunca tive
que me tornei piada para muita gente por viver no limbo
que não encontrarei nunca quem me suporte
que fui preterido por pessoas mais miseráveis que eu
que seguirei a vida toda assim e ano que vem serei muitas vezes mais ridicularizado por minha
boba ambição
que estou cansado de receber conselhos de outros mais entorpecidos que eu (Ex: você é muito preguiçoso, tenha ânimo, desperte)
que nunca poderei viajar para a Índia
que recebo favores sem dar nada em troca
que percorro a cidade de um lado a outro como uma pluma
que me deixo levar pelos outros
que não tenho personalidade nem quero tê-la
que todo dia calo minha rebelião
que não lutei nas guerrilhas
que não fiz nada por meu povo
que não sou das FALN e me desespero por todas essas coisas e por outras impossíveis de enumerar
que não posso sair de minha prisão
que sou qualificado em todo canto como inútil
que na realidade não pude casar nem ir para Paris nem ter um dia sereno
que sempre babo sobre minha história
que sou idiota e mais que idiota de nascimento
que perdi o rumo do discurso que soava em mim e não pude reencontrar
que não choro quando sinto desejo de chorar
que me atraso em tudo
que sou arruinado por tanta marcha e contramarcha
que anseio a imobilidade perfeita e a pressa impecável
que não sou o que sou nem o que não sou
que apesar de tudo tenho um orgulho satânico ainda que em certas horas tenha sido humilde
até igualar-me às pedras
que vivi quinze anos no mesmo círculo
que me julguei predestinado para algo extraordinário e nada conquistei
que nunca usarei gravata
que não encontro meu corpo
que percebi por lampejos minha falsidade e não pude destruir-me, varrer tudo e criar
da minha indolência, da minha
flutuação, do meu extravio um ar novo, e obstinadamente
meu suicídio ao alcance da mão
me levantarei do chão mais ridículo ainda para seguir zombando dos outros e de mim até o dia
do juízo final.

(Rafael Cadenas; trad.: Gustavo Petter)

10.10.15


"Confesso que fiquei totalmente desorientado depois da conversa com este extraordinário indivíduo. Tenho receio de estar ainda em estado de contar o caso de tal modo que venha a afetar outras pessoas como aconteceu comigo. Provavelmente, esse efeito foi devido em grande parte à candura e ao tom amistoso com que um desconhecido se abriu ante mim.

Reparei no desconhecido, pela primeira vez, há cerca de dois meses, numa tarde de Outono, na Piazza di San Marco. Andava pouca gente na rua; mas na espaçosa praça, as bandeiras ondulavam impelidas pela brisa marítima, diante dessa suntuosa maravilha de cor e linha que se ergue com um luminoso encantamento contra um sol ligeiramente azulado. Por detrás da porta principal, uma rapariga estava a deitar milho aos pombos que acorriam, em nuvens cada vez mais numerosas, de todos os lados. Um quadro alegre e festivo.

Encontrei-o na praça e estou ainda a vê-lo nitidamente enquanto escrevo. Era bastante abaixo da estatura média e um pouco curvado, passeando com vivacidade e agarrando a bengala atrás das costas. Usava um chapéu de coco, um casaco leve de Verão e umas calças escuras listradas. Não sei por que, tomei-o por um inglês. Tanto podia ter trinta anos como cinquenta. O seu rosto estava bem barbeado, com um nariz grosso e uns olhos negros cansados; em redor da sua boca brincava constantemente um sorriso inexplicável e, de certo modo, simples. Mas, de vez em quando, olhava em volta inquieto, depois punha os olhos no chão, murmurava algumas palavras para si, sacudia a cabeça e caía de novo no mesmo sorriso. Deste modo caminhava na praça, perseverante, de um lado para o outro.

Depois desse primeiro encontro, passei a reparar nele todos os dias; porque me parecia não ter outra ocupação além de passear para baixo e para cima, trinta, quarenta ou cinquenta vezes, com o bom ou o mau tempo, sempre só e sempre com aquele extraordinário aspecto.

Na noite que pretendo descrever tinha havido um concerto por uma banda militar. Eu estava sentado numa das pequenas mesas do café Florian que estavam espalhadas na Piazza; e quando, após o concerto, a multidão começou a dispersar, o meu desconhecido, com o seu habitual sorriso vago, sentou-se numa cadeira livre perto de mim.

A noite seduzia, o cenário tornava-se cada vez mais sereno, em breve todas as mesas ficaram vazias. Apenas alguns vagabundos partiram, a majestosa praça ficou envolvida em paz, o céu, por cima, multiplicou-se em estrelas; uma grande meia lua pendia sobre a espetacular fachada de San Marco. Eu tinha estado a ler o jornal, de costas viradas para o meu vizinho, e estava para lhe ceder o campo quando fui obrigado, pelo contrário, a virar-me na sua direção. Apesar de não ter ouvido nenhum som, ele começou subitamente a falar:

“Está em Veneza pela primeira vez, senhor?”, perguntou ele, num francês bastante mau. Quando tentei falar-lhe em inglês, ele continuou em correto alemão, falando em voz baixa, áspera e tossindo frequentemente para a tornar mais clara.

“Está vendo tudo isto pela primeira vez? Concordou com as suas esperanças? Ultrapassou-as? Não a tinha imaginado mais bela do que na realidade é? Na verdade? Não estará a dizer isso com o fim de parecer feliz e digno de inveja? Ah!” Ele inclinou-se para trás e olhou para mim, pestanejando rapidamente com uma expressão inexplicável e serena.

A pausa que se seguiu durou algum tempo. Eu não sabia como havia de continuar a conversa e uma vez mais ia partir quando ele, precipitadamente, se inclinou para mim.

“Sabe, meu caro senhor, o que é a desilusão?”, perguntou, num tom baixo e apressado, agarrando a bengala com ambas as mãos. “Não o mau êxito em pequenos assuntos insignificantes, mas a desilusão grande, geral, que engloba tudo, tudo o que faz parte da vida? Não, claro, não sabe. Mas eu tenho sido acompanhado por ela desde a juventude; ela tornou-me solitário, infeliz e, não o nego, um pouco excêntrico.

O senhor não pode, claro, compreender de repente o que eu quero dizer. Mas devia. Peço a sua atenção durante alguns minutos. Porque se isto pode ser contado, é possível fazê-lo em poucas palavras. Posso começar por dizer que descendo duma família de clérigos, numa pequena cidade. Em nossa casa reinava a absoluta limpeza e o patético otimismo dum ambiente inteligente. Respirávamos uma atmosfera estranha, cheia de retórica de púlpito, de grandes palavras para o bem e o mal, belas e desprezíveis, que eu odiava amargamente — são elas mesmo, talvez, a causa de todos os meus sofrimentos.

Para mim a vida consistia inteiramente nessas grandes palavras; porque não conhecia mais do que as grandes emoções infinitas, metafísicas que elas despertavam em mim. Do homem, eu esperava a virtude divina ou a horrenda perversidade; da vida, ou a beleza mais arrebatadora ou o mais completo horror; e estava cheio de avidez por tudo isso e de uma saudade profunda, atormentada, por uma realidade mais ampla, por uma experiência não importa de que gênero, fosse uma ventura gloriosa e intoxicante ou uma angústia indizível.

Recordo, senhor, com uma dolorosa nitidez, o primeiro desapontamento da minha vida; e rogo-lhe que observe que este não tem nada a ver com o malogro de esperanças particulares, mas com um triste acontecimento. Uma noite, houve um incêndio em casa de meus pais, quando eu pouco mais era que uma criança. Espalhou-se insidiosamente até que o primeiro andar ficou em chamas, chegou ao meu quarto e não tardou a alcançar as próprias escadas. Fui eu quem o descobri, e lembro-me que comecei a berrar pela casa, batendo as palmas: ‘Fogo, fogo!’ Sei exatamente o que disse e que sentimentos respiravam nas minhas palavras, ainda que nessa altura dificilmente teriam aflorado à minha consciência. ‘Então isto’, pensei, ‘é um fogo. É afinal, como ter a casa em chamas. Tanta coisa para isto?’

Deus sabe que era um caso bastante sério. Toda a casa ardeu e apenas a família foi salva com grande dificuldade, e eu cheguei a sofrer algumas queimaduras. E teria sido falso dizer que a minha fantasia poderia ter pintado alguma coisa pior do que o incêndio de minha casa. No entanto, devia ter existido em mim alguma ideia vaga dum acontecimento ainda mais horrível, em comparação com o qual a realidade parecia insípida. Este incêndio foi o primeiro grande acontecimento da minha vida. E deixou-me defraudado na minha esperança de coisas horrorosas.

Não receie que eu continue a contar-lhe pormenorizadamente os meus desapontamentos. Basta-me dizer-lhe que alimentei cuidadosamente as minhas magníficas esperanças na vida com o conteúdo de um milhar de livros e com as obras de todos os poetas. Ah, como aprendi a odiá-los, esses poetas que pintavam as suas grandes palavras em todas as paredes da vida — porque não tinham poder para as escrever no céu com lápis mergulhados no Vesúvio! Acabei por pensar que todas essas grandes palavras eram uma mentira ou uma troça.

Os poetas extáticos têm dito que a palavra é pobre: ‘Ah, quão pobres são as palavras’, cantam eles. Mas, não, senhor. As palavras, julgo eu, são ricas, são extraordinariamente ricas, comparadas com a pobreza e as limitações da vida. A dor tem os seus limites: a dor física, na inconsciência, a mental no torpor; não difere da alegria. A nossa humana necessidade de comunicação encontrou uma maneira de criar sons que se estende para além destes limites.

É minha a culpa? Será erro meu que certas palavras possam correr e acordar em mim a intuição de sensações que não existem?

Saí para essa vida que eu cuidava tão maravilhosa, esperando que uma, uma única, experiência correspondesse às minhas grandes esperanças. Valha-me Deus, nunca o consegui. Tenho percorrido todo o planeta, visto as mais extraordinárias paisagens, todas as obras de arte sobre as quais têm sido pródigas as mais extravagantes palavras. Fiquei perante elas e murmurei: ‘É belo. No entanto, será tudo?’ Não tenho o sentido do atual. Talvez esteja aí o busílis. Uma vez, num ponto qualquer do mundo, estive junto dum profundo e estreito desfiladeiro nas montanhas. Fitei as rochas erguidas em perpendicular, de ambos os lados e, em baixo, a água rugindo. Olhei para baixo e pensei: ‘Que aconteceria se eu caísse?’ Mas conhecia-me bem e respondi: ‘Se isso fosse acontecer, tu dirias: Agora estou a cair, neste momento estou a cair. Bem, e que tem isso?’

Pode crer que não falo sem experiência da vida. Anos atrás apaixonei-me por uma rapariga, uma moça encantadora, e teria sido a minha alegria protegê-la e acarinhá-la. Mas ela não me correspondia, o que não é nada surpreendente, e casou-se com outro. Que experiência pode ser mais dolorosa do que esta? Que maior tortura haverá do que a agonia árida da luxúria frustrada? Muitas noites fico acordado e de olhos abertos; mas a minha maior tortura reside no pensamento: ‘Então esta é a maior dor que podemos sofrer? Bem, e então — é tudo?’

Posso contar-lhe a minha felicidade? Porque eu também fui feliz. E também fiquei desapontado. Não, não preciso de continuar… Para não acumular exemplos, devo esclarecer-lhe que foi a vida em geral, a vida no seu desenrolar triste, desinteressado, normal, que me desapontou — desapontou, desapontou!

‘O que é o homem?’ perguntou o jovem Werter. O homem, o glorioso semideus? Não falharão os seus poderes justamente onde ele mais necessita deles? Quer adeje em alegria ou se afunde em angústia, não regressou sempre à nua e fria consciência, precisamente no momento em que ele procurava perder-se na imensidão do infinito?

Muitas vezes tinha pensado no dia em que visse o mar pela primeira vez. O mar é vasto, o mar é grande, os meus olhos percorreram a sua imensidão e desejaram libertar-se. Mas havia o horizonte. Por que o horizonte quando eu desejava o infinito da vida?

O meu horizonte pode ser mais estreito do que o de outro homem. Já disse que me falta um sentido do hodierno — ou talvez o tenha demais. Talvez me fartasse ou me tivesse familiarizado cedo demais com as coisas. Estarei familiarizado dum modo demasiado adulterado com a alegria e a dor?

Não acredito nisso e, antes de mais nada, creio naqueles cujas visões da vida são baseadas nas grandes palavras dos poetas — tudo é mentira e covardia. E deve ter observado, meu caro senhor, que há seres humanos tão frívolos e vorazes da admiração e inveja do seu semelhante que pretendem ter experimentado as alturas da felicidade mas nunca o abismo da dor?

Está escuro e o senhor já deixou de me prestar atenção; por isso aproveito para confessar sem pejo que tentei ser como esses homens e mostrei-me feliz perante o mundo. Mas há alguns anos que o balão desta vaidade foi furado. Agora sou só, infeliz e, não posso negá-lo, um pouco excêntrico.

A minha ocupação favorita é contemplar, à noite, o céu estrelado — é a melhor maneira de afastar a vista da terra e da vida. E talvez me possa ser perdoado o fato de ainda perseverar nas minhas remotas esperanças. Por que sonho eu com uma vida mais livre, onde a atualidade das minhas loucas antecipações se revela sem nenhum torturante resíduo de desilusão? Com uma vida onde não há horizontes?

Assim, eu sonho e espero que a morte venha. Ah, já a conheço bem, a morte, esse desapontamento derradeiro! No meu último momento, direi para os meus botões: ‘Então é esta a grande experiência — bem, e que tem isso? Que é isso, no fim de contas?’

Mas a Piazza começa a arrefecer, senhor — isso ainda eu posso sentir — ah, ah! Tenho a honra de lhe desejar uma muito boa noite.”

(Thoman Mann, Desilusão)

11.9.15


um final plausível

deveria haver algum lugar para onde ir
quando você não consegue mais dormir
ou você cansou de ficar bêbado
e a erva não funciona mais,
e não me refiro a passar
para o haxixe ou cocaína,
eu me refiro a um lugar para ir além
da morte que está esperando
ou do amor que não funciona
mais.

deveria haver algum lugar para onde ir
quando você não consegue mais dormir
além de um aparelho de TV ou um filme
ou comprar um jornal
ou ler um romance.

é não ter esse lugar para onde ir
que cria as pessoas agora nos hospícios
e os suicídios [...]

(Bukowski)

25.8.15


Tentem ser livres: morrerão de fome. A sociedade só os tolera se são sucessivamente servis e despóticos; é uma prisão sem guardiões, mas da qual não se escapa sem perecer. Para onde ir, quando só se pode viver na sociedade e quando já não se tem instintos, e quando não se é tão arrojado para mendigar, nem tão equilibrado para entregar-se à sabedoria? No final das contas, continua-se a ser como todo o mundo, fingindo atarefar-se; resigna-se a tal extremo graças aos recursos do artifício, entendendo que é menos ridículo simular a vida do que vivê-la.

...o pacto dos símios está para sempre selado; e a história segue seu curso, horda esbaforida entre crimes e sonhos. Nada pode detê-la: mesmo os que a execram participam de sua carreira.

(Emil Cioran)