30.1.15

Pensei que era fácil desmembrar-se.
Imaginei fácil, ante o terror, o tiro de socorro. A cartada final.
Corri meu desespero léguas adiante. Ali, onde o futuro se despega do homem
como uma casa cujas portas fecham-se às nossas costas,
os aposentos morrem entre suspiros de "nunca mais",
sem tempo de corvos nos umbrais.

Quem era eu nesse quarto? Meus olhos - e só eles -
ressonavam.
Uma vaga cantiga de infância bruxuleava,
e toda a minha humanidade era esse farrapo.
O escuro convém - mas sem sono ou reticências...
(Glória a Deus houvesse bocejos!)

Um homem, ante o terror, mata - ou morre.
Tiro, corda ou veneno? Ah, por amor aos familiares
o que for menos vermelho...

27.1.15

Cada indício era real e se fartava de símbolos. Eram reais as mães abandonadas, com filhos impossivelmente reais e distantes; eram reais as dançarinas amputadas, quando o anúncio de neon na avenida principal acentuava a catástrofe dos estilhaços por vir; eram reais as crianças bêbadas, que vagavam de bar em bar com uma garrafinha de pinga com limão entre os dedos. Talvez se eu sonhasse pudesse sacudir tudo de mim ao acordar, como um cachorro encharcado - quando ao menor indício de liberdade, quando ao menor vacilo do demiurgo, o corpo se desatarraxa do mal numa dança frenética, os pelos eriçando-se como pássaros assustados. Mas tudo era real, demasiado real (se eu me beliscasse com a força necessária talvez a carne rebentasse e o sangue, como um detento afoito, fizesse o caminho necessário do corpo para a vala e aí, ah, quem sabe aí, um delírio, uma perda de sentidos, uma manifestação onírica de dançantes imagens superpostas - quem sabe, aí sim, o sonho).

25.1.15

Consumação da dor

Eu até consigo ouvir as montanhas
o modo como elas dão risada
de cima a baixo em suas encostas melancólicas
e lá embaixo na água
os peixes choram
e toda a água
são suas lágrimas.
Eu ouço a água
nas noites em que saio para beber
e a tristeza se torna tão grande
eu a ouço no meu relógio
ela se torna maçanetas na minha gaveta
ela se torna papel no chão
ela se torna calçadeira de sapato
um bilhete de lavanderia
ela se torna
fumaça de cigarro
escalando uma capela de vinhas escuras...

pouco importa

muito pouco amor não é tão ruim
ou muito pouca vida

o que conta
é esperar apoiado em paredes
eu nasci pra isso

Eu nasci para agitar rosas nas avenidas
por onde passam os mortos.

(Bukowski)