16.9.16

a escrita ainda é o que sobra.

nas sobras dela o destino cisca suas migalhas.

em cada migalha há um prenúncio.

o prenúncio é a porta-palavra de onde se parte.

o rio, no entanto, não deságua em nenhum mar.

há um fluir e um marulhar e uma cristalização

de seres que deslizam sob seu mistério.

todo mistério é uma derrocada antecipada:

é necessário despir-se de deuses e metafísicas

pois todo o oculto dorme sob o sangue.

de resto, nada mais.
sim senhora adornadora de sentidos
sim senhora domesticadora de trens
alucinatórios
o mundo cedeu os demônios mentiram
as rezas quebrantos maledicências
nos conduzem
sim vamos combalir senhora
pela voracidade dos vermes que ora
regurgitam
sua baba
- ainda não é hora -
sim os vermes a resiliência
o vírus adormecido no tempo
a catacumba no fundo dos olhos
um céu já desprovido do branco
um sangue já desprovido do vermelho
uma morte já desprovida do luto
senhora.
era tudo noite
os homens se desfaziam
era tudo noite
cães lambedores de sêmen
pétalas rijas
um olhar empedrado de lua.

era tudo sombra
de orações aprisionadas
era tudo sombra
de sexos e bocas cálidas.

sua boca arrefecia o luar
apagava o choro -

as crianças acordavam.

15.9.16

e já não há mais rotas
estamos rotos
sem pouso -
a letra é morta.

a dança acrobática
o riso louco
o passo mouco -
nada fere a casca.

a rima, se há,
se enquadra no poema -
há metro
diagram-
ação org
anicidad
e poética

fugi
                   fugi
                                                                       fugi

para onde

?

20.8.16

deâmbulo

estamos sozinhos,
não saímos:
arco-íris pintados nas paredes
amor em touchscreen
beijos de látex.

ainda na pele esverdeada
um filete de sangue
a lágrima invertida
o pau - animal resiliente -
babando.

ainda uma memória
semi-palpável.
ainda o acre
da faca nos dentes,
rangentes.

31.7.16


o papa em auschwitz

o papa esteve em auschwitz.
algo do papa esteve em auschwitz
quando suas mãos tocaram a pedra fria
já desvestida do horror.

o papa esteve em auschwitz
e uma criança e um santo
e o judeu esfomeado
clamaram em sua divinizada cabeça.

em auschwitz, o papa:
o rito da dor e da misericórdia
encontrou rostos contritos
e o vento lavrou cópia de tudo.

(câmeras, muitas câmeras,
flashes e tempo real e trajes a rigor
quando um papa em auschwitz)

em auschwitz o papa
de uma indumentária imaculada
encontrou bocas para as suas mãos
encontrou o papamóvel para as suas pernas

o papa não encontrou deus.

30.7.16

registro

lembro de uma vez ter escrito teu nome em pedra.
tu não sabes que escrevi
teu nome em pedra.

puro engano: hoje sei
que a pedra nada sabe do teu nome
nem teu nome - posto que não sabes - dela.

a pedra permanece, mercê de contratempos,
ígneas concavidades
e um registro alheio à sua natureza.

estranhos:
três seres hoje descompactados
além de um estrago
no peito
na pedra.

pois que me tornei o arauto do oco
do desplante
do descaso
da ferida -

do silêncio dito em mordidas
no pão seco
na palavra utilitária
no aceno desvalido.

sonâmbulo em vigília
abortado de contiguidades
assassinado sem vestígios -

há um frio de que não me abrigo
há um calor de que não disponho
há uma fome em que me entranho

e me estranho, ainda, apesar-de, estar.

11.7.16

Talvez a descoberta partilhada a medo
E o tato
O cheiro-húmus da tua boca
Possam me refazer me deslocar
Dali onde tudo era silêncio.
E como ficou chato ser moderno. 
Agora serei eterno. 

Eterno! Eterno!
O Padre Eterno, 
a vida eterna, 
o fogo eterno. 

(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)

— O que é eterno, Yayá Lindinha?
— Ingrato! é o amor que te tenho. 

Eternalidade eternite eternaltivamente
                   eternuávamos
                           eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno. 

Eterna é a flor que se fana
se soube florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem nome 
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e 
                                     [nenhuma força o resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos; e
                                                [passageiras as obras. 
Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um
                                                [mar profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos
                                                [afundamos.
É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios. 
Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.

Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma
                                               [essência
ou nem isso. 
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde
                                               [pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como
                                             [uma esponja no caos
e entre oceanos de nada
gere um ritmo.

- Drummond.

26.1.16


Falar de poesia, como coisa ainda viva
Contornar a si mesmo - coisa ainda viva -
Aparando os excessos do eu
Divergindo da voz no instante mesmo
em que a voz nasce, cresce, zumbe.

Calar a poesia - porque o tempo urge
e é feroz -
Em cada golpe de faca um ultimato
ao lirismo podre de velho.

Pelas ancas nuas do Abismo
os amores jamais existirão:
sob uma lua sanguinolenta,
em transes de fúria,
cadáveres do passado esmurram vidros.

:::AVISO:::
Procura-se no átimo do soco
Nas vítimas que jazem em sacos
ESSA voz.