31.7.16


o papa em auschwitz

o papa esteve em auschwitz.
algo do papa esteve em auschwitz
quando suas mãos tocaram a pedra fria
já desvestida do horror.

o papa esteve em auschwitz
e uma criança e um santo
e o judeu esfomeado
clamaram em sua divinizada cabeça.

em auschwitz, o papa:
o rito da dor e da misericórdia
encontrou rostos contritos
e o vento lavrou cópia de tudo.

(câmeras, muitas câmeras,
flashes e tempo real e trajes a rigor
quando um papa em auschwitz)

em auschwitz o papa
de uma indumentária imaculada
encontrou bocas para as suas mãos
encontrou o papamóvel para as suas pernas

o papa não encontrou deus.

30.7.16

registro

lembro de uma vez ter escrito teu nome em pedra.
tu não sabes que escrevi
teu nome em pedra.

puro engano: hoje sei
que a pedra nada sabe do teu nome
nem teu nome - posto que não sabes - dela.

a pedra permanece, mercê de contratempos,
ígneas concavidades
e um registro alheio à sua natureza.

estranhos:
três seres hoje descompactados
além de um estrago
no peito
na pedra.

pois que me tornei o arauto do oco
do desplante
do descaso
da ferida -

do silêncio dito em mordidas
no pão seco
na palavra utilitária
no aceno desvalido.

sonâmbulo em vigília
abortado de contiguidades
assassinado sem vestígios -

há um frio de que não me abrigo
há um calor de que não disponho
há uma fome em que me entranho

e me estranho, ainda, apesar-de, estar.

11.7.16

Talvez a descoberta partilhada a medo
E o tato
O cheiro-húmus da tua boca
Possam me refazer me deslocar
Dali onde tudo era silêncio.
E como ficou chato ser moderno. 
Agora serei eterno. 

Eterno! Eterno!
O Padre Eterno, 
a vida eterna, 
o fogo eterno. 

(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)

— O que é eterno, Yayá Lindinha?
— Ingrato! é o amor que te tenho. 

Eternalidade eternite eternaltivamente
                   eternuávamos
                           eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno. 

Eterna é a flor que se fana
se soube florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem nome 
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e 
                                     [nenhuma força o resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos; e
                                                [passageiras as obras. 
Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um
                                                [mar profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos
                                                [afundamos.
É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios. 
Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.

Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma
                                               [essência
ou nem isso. 
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde
                                               [pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como
                                             [uma esponja no caos
e entre oceanos de nada
gere um ritmo.

- Drummond.