Evoco, sem motivo aparente, a voz dela. Etérea. Ela nunca se materializou, nunca pude vê-la. Lembro-me dos dias também imprecisos, como se sua principal característica fosse a ausência de contorno. E nesses limites borrados eu podia criar qualquer coisa. Podia imaginar uma vida: filhos, cães, viagens, talvez uma casa na praia. Tudo era possível, porque nada era real.
Ela flutuava, sempre migrando de um lugar a outro. Sua voz ao telefone era a de alguém que tinha a vida a seus pés. Ela gostava de música e de poesia. Eu gostava do que era capaz de imaginar quando me imaginava com ela. Assim, de projeção em projeção, a vida acontecia. Com força e potência, porque suspensa. Hoje, tudo o que não foi me faz entender que somos muito mais do que aquilo que realizamos. É totalmente possível sermos sem vivermos. Um homem, mesmo o mais comum, mesmo o mais aparentemente banal, é uma sobreposição de universos - fogueira a arder no vazio e projetando mil imagens, sem que ninguém as veja.
Hoje rememoro isso em um blog que não passa de cinzas - as quais, vez por outra, avivo por distração. Mais por necessidade que por gosto, precisamos regar nossas plantas.
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Fernando Pessoa, em algum momento - e talvez não com essas palavras - escreveu que os sonhos são a nossa única realidade.