dentro das horas
conjuro a tarde:
um rio passa dentro de mim.
nenhum dever, o sol
pousado na grade,
vadios pousados nas folhas.
um bater de asas ao longe.
outra passagem se desenha
na camuflagem de ouro...
(o barco
no rio que há mim
parte...)
As coisas grandes ficaram para trás -
hoje olhamos, cansados,
a mala por fazer.
A cada dia
mais poeira acumulada:
recalculamos
o eterno movimento.
Olhamos para cima
mas as nuvens, em suas variações,
sempre formulam a mesma frase.
Sísifo ao menos
podia contemplar
as grandes peripécias
da pedra durante a queda,
e a vista do topo.
te ofereci conforto
à maneira usual:
palavras frases sorrisos
um sol canhestro
desenhado em folha velha.
me ofereci
como quem diz:
toma, este corpo
em tuas mãos em tua sede
há de ter algum
proveito.
o mais correto seria:
te ofereço meu silêncio
e a vista destas chagas
mas isso não sei como
dizer.
Abri a janela sem saber onde estava:
olhei o mundo como (talvez?)
um recém-nascido.
Tinha consciência da minha inconsciência.
Demorei-me naquele momento
poupando os olhos,
rastreando, palmo a palmo,
os objetos.
Cada sensação me protegia
sob a casca da manhã.
E então, entendi,
e o entendimento
tudo escureceu -
como quem desaba de um precipício
como quem descobre
sob a pele
um velho personagem.
Tem coisas a que a gente se apega. Por necessidade, sobrevivência. Às vezes somos capturados na distração: uma luz incidindo obliquamente, de forma a nos causar algum tipo de maravilhamento ótico; um cheiro bom, vindo de longe, talvez da casa perdida da infância. A vida, sem essas distrações, seria insuportável. Sem elas, não existiria poesia.
Tudo isso se dá no vácuo. Não existe no discurso oficial da Vida. É como um detalhe marginal incapaz de inspirar grandes narrativas. Olhe de perto, bem de perto. Ou olhe de longe, de modo que as coisas se fundam, e em tudo exista a implicância de tudo.
São as duas maneiras possíveis de olhar.
Tive um sonho lindo. Estava em lugar inóspito, incultivado, que parecia a Praça da Matriz. Então pessoas começaram a chegar para cuidar do espaço. Logo, tudo começou a frutificar. Havia verduras. Era como ver, em tempo recorde, com trabalho, dedicação e amor, a vida florescendo.
Alguém questionava tudo aquilo e eu explicava que antes o local estava abandonado. Porém, agora, havia alimento. E muito significado. Eu estava feliz.
De repente, encontro um tio meu, já falecido. Em vida me pareceu nunca se encaixar em lugar nenhum. Lá ele tinha uma perua e vendia algum produto - não lembro bem qual. Ele trabalhava, assim como os demais. O dia era luminoso e do ponto mais alto do terreno eu podia ver a harmonia e beleza de tudo quanto se realizava ali.
Foi um sonho lindo. Eu estava feliz.
Voltei para os ermos e para
a poesia:
pássaros cintilantes
a hera de fogo
a terra fumegante
por ora
me esquecem.
apenas um sussurro em que se adivinhe
a palavra.
apenas um sopro onde o vento
sequer é lembrado,
o repouso em que se entranha
o recém-nascido.
nada dele cresce
que não se emende em um balouçar
de folhas
(uma oração
cresce na noite
reivindicando
as causas perdidas).
A borboleta do momento atravessa o espaço
vaga, frágil
mas real.
Deixo passar a imagem
de uma certa dor: dentro,
confrontam-se em mim
as aquarelas possíveis.
Aprendo que o mundo é sempre
outra coisa. Desfaço
com as cores permanentes
o laço.
E durmo, carente de mudanças.
E sonho, no repouso,
o que ainda não sei ser,
escutando no silêncio,
vislumbrando no etéreo
o movimento do mundo.
há tantos livros tantos
e para cada um deles uma infinidade de linhas -
em cada linha uma vasta composição
escondendo séculos de vida e morte.
há tantos homens tantos
e para cada um deles uma infinidade de sombras -
em cada sombra uma vasta promessa
diluída em silêncios & feixes de luz.
não: nada importa
senão diminuir o passo frente ao precipício
e contemplar em face ao delírio de flores na escarpa
a queda.